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Maria Helena Cruz Pistori
O discurso jurídico: refletindo e refratando polêmicas sociais (Resumo expandido)
Maria Helena Cruz Pistori
Retomo aqui interesses que têm direcionado minha pesquisa: o discurso jurídico como objeto, a retórica considerada essencialmente como arte da persuasão (apenas uma de suas possíveis definições) e, naturalmente, a obra bakhtiniana naquilo que sugere como análise dialógica do discurso. Na realidade, as possibilidades dessa aliança teórica têm se mostrado especialmente produtivas na análise e compreensão do discurso jurídico, no qual questões como a antifonia - na justiça, o princípio do contraditório, e as questões da tensão bakhtiniana "...o conflito tenso no nosso interior pela supremacia dos diferentes pontos de vista verbais e ideológicos" (BAKHTIN, 1993, p.145)[1] estão presentes de modo destacado. Começo pelo objeto que será foco desta apresentação: o voto do Ministro Carlos Ayres Brito, relator do processo que respondeu à arguição de inconstitucionalidade da Lei da Biossegurança nacional, de 2005, por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 3510), ajuizada pelo procurador-geral da República no Supremo Tribunal Federal. A polêmica social em torno da alegação de que as pesquisas com as células-tronco embrionárias violariam o direito à vida e a dignidade da pessoa humana foi estimulada pelas diferentes mídias. Ela se constituiu parte dos variados embates de ideias presentes em nossa sociedade, o que é natural na democracia pluralista em que vivemos, na qual inúmeros confrontos de opinião, suscitados pela diversidade e liberdade de pensamento, suscitam polêmicas acirradas. Respondendo a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 3510), o Supremo Tribunal Federal considerou-a constitucional, mantendo a posição inicial. Guiando tal decisão, o voto do Relator, precedido do relatório processual, reflete e refrata amplamente a polêmica social encetada. Importante ressaltar que, no texto que tomamos para análise, encontramos, de início, o que poderia ser compreendido tão somente como uma polêmica reportada – um discurso indireto que retomaria a polêmica “real” que ocorreu/ocorre na sociedade -, num enunciado composto de Relatório e Voto, elaborado para orientar a decisão dos demais ministros em relação à constitucionalidade daquela matéria. No entanto, ao exercer esta função orientadora, tal como um Parecer, o voto manifesta uma opinião e a justifica. Por isso, expressa novamente a polêmica no posicionamento axiológico assumido pelo Ministro, mostrando que, ainda que o debate jurídico busque de preferência o consenso, nem sempre isso ocorre – e, neste caso, também não ocorreu, tanto no STF como na sociedade. O conceito de "polêmica" é algo amplamente disseminado no senso comum, mas uma análise requer que algumas considerações sobre aspectos que a caracterizam sejam retomados. E lembro inicialmente que, desde Aristóteles, sabemos que é a retórica o lugar da controvérsia e da busca da adesão do outro a uma determinada forma de ver o mundo, à busca de um consenso, em outras palavras. Então, que lugar teria nela o polêmico? Estudos recentes de retórica e argumentação, especialmente o trabalho de Ruth Amossy (Apologie de la Polémique, Paris: PUF, 2014), abordam as possibilidades de uma retórica do dissensus, isto é, daquela não preocupada com a adesão do outro. Destaco, em primeiro lugar, o próprio título da obra: trata-se de uma apologia da polêmica, cuja defesa se baseia justamente na função que exerce de articulação das tensões sociais em torno de opiniões antagônicas. Isto é, segundo a autora, a polêmica serviria a uma "gestão verbal do conflito", dando espaço a confrontação pública de conflitos insolúveis e mesmo formando comunidades de protesto e de ação, como podemos observar nos próprios agentes da Ação de Inconstitucionalidade da lei de Biossegurança. Em segundo lugar, recuperando estudos desde a Antiguidade, a mesma autora nos lembra de que a polêmica goza de mau prestígio na área dos estudos retóricos por fugir à racionalidade argumentativa, na medida em que o espaço público exige tomada de decisões racionais e coletivas pela via do acordo. Etimologicamente, o termo polêmico diz respeito à guerra. Importante notar, porém, que este caráter “belicoso”, mais ou menos ostensivo, se mantém na atualidade e se manifesta, por vezes, na violência verbal, na desqualificação do adversário, ou no próprio debate virulento, que seriam os primeiros aspectos a se destacar numa polêmica. Outro aspecto importante do debate polêmico é sua ocorrência no espaço público - necessariamente democrático, em torno de uma questão pública. Ainda que o debate possa partir de uma questão privada, os posicionamentos assumidos se pretendem válidos para a sociedade como um todo. É isso que acontece, por exemplo, em relação ao uso do véu muçulmano nas escolas francesas, ou ao uso de células-tronco embrionárias para pesquisas com fins terapêuticos, na sociedade brasileira. No caso do voto que analisamos, inclusive, o Ministro afirma que a “ação direta de inconstitucionalidade é de tal relevância social que passa a dizer respeito a toda a humanidade”. Nesse sentido, é necessário ressaltar também o papel decisivo das mídias no desenvolvimento das polêmicas, muito embora pareça que os debates que expõem ou propõem, em várias ocasiões, têm o objetivo primeiro de suscitar a curiosidade e as emoções no público leitor. Mais ainda: às vezes parecem ter um caráter claramente sensacionalista, com a finalidade mal disfarçada de vender a notícia ao maior número possível de consumidores (leitores ou expectadores). O consumidor vê/lê/ouve a polêmica, então, como assiste a um jogo, à procura de um vencedor, aquele que manipula melhor a própria violência verbal. Finalmente, outra característica muito clara da polêmica é o modo como gerencia o conflito por meio da dicotomização. Isto é, o polêmico se distingue do meramente controverso, pois se caracteriza pela polarização de opiniões expressa em discursos de confrontação, e gera, eventualmente, uma divisão social em torno das questões em jogo: expressam-se duas posições contrárias, explicitamente opostas. Exatamente como observamos no Relatório do voto, que reporta as opiniões relativas à questão das pesquisas com células-tronco embrionárias. São alguns desses aspectos que encontramos no Voto do Ministro Ayres Britto - um voto polêmico - a dicotomização, a questão pública, a difusão midiática... Deixo em suspenso a questão da belicosidade ou da violência verbal. Na realidade, a polêmica pode se expressar em gêneros discursivos variados. Alguns vão considerá-la uma modalidade argumentativa, como Amossy, que a situa em um dos polos do "continuum argumentativo" (2014, p.55); outros a tratam como um registro, um tipo de discurso, um tom ou ainda uma tonalidade discursiva (cf. Maingueneau, 2008, p.109-120)[2]. Em O problema do texto (2006, p.327), Bakhtin refere-se brevemente à polêmica (também à discussão, à paródia) como uma compreensão estreita do dialogismo: são "formas evidentes porém grosseiras de dialogismo", diz ele. Esse, na realidade, é o primeiro sentido em que podemos considerar polêmico o voto em questão. Mas Bakhtin trata preferentemente do "estilo polêmico", e refere-se ao polêmico em diferentes pontos de sua obra, ora apontando o "caráter polêmico" de manifestações discursivas ou de imagens, ora referindo-se a artigos polêmicos, artigos científicos polêmicos, etc. Mais importante: o polêmico bakhtiniano está sempre ligado à questão da dialogia no sentido amplo, a dialogia inerente aos discursos. Em Marxismo e filosofia da linguagem (1981, p.146), Voloshínov, ao abordar a possibilidade de uma recepção ativa polêmica da enunciação de outrem, já assinala o fato de se levar em consideração o terceiro, a finalidade, a situação e as condições de produção na transmissão dos enunciados. Lembro também que tom, estilo e mesmo a forma de autoria são determinados pelo gênero. Reitero, então, que o estilo polêmico se manifesta em diferentes gêneros discursivos. Assim, no Voto do Ministro Ayres Britto, o primeiro sentido de polêmica é aquele evidente, da "forma grosseira de dialogismo", na medida em que é expressão de discursos opostos que efetivamente ocorreram/ocorrem na sociedade; nele, contudo, ainda observamos o discurso bivocal bakhtiniano, a dialogia polêmica entre vozes diversas, o que particularmente nos interessa. Para isso, em primeiro lugar, é imprescindível compreender o gênero voto de Relator no Tribunal como pertencente à esfera ideológica do Direito e, particularmente, respondendo aos pré-requisitos necessários ao voto de Relator, que é assim definido no Vocabulário jurídico de De Plácido e Silva: “ a opinião manifestada a respeito de determinado fato. [...] Pelo voto, a pessoa dá o seu parecer, manifesta sua opinião...” (De Plácido e Silva, 1997, p.508). No caso deste texto, trata-se de um voto consultivo, pois não tem poder de decisão, mas de orientar – e não determinar, a decisão que o colegiado de ministros deve tomar, e é parte do ritual procedimental daquela corte. Voltado para questões suscitadas pela sociedade, ele pertence também ao espaço público, na medida em que o reflete e o refrata. Estruturalmente o voto se constitui de duas partes, compostas de 71 longos parágrafos (72 páginas no original): a primeira é o Relatório, que brevemente analisaremos; a segunda, o voto propriamente dito, cuja análise incidirá apenas sobre os últimos parágrafos. Nosso primeiro objetivo será examinar o discurso do Relator do ponto de vista de sua relação com o discurso do outro; um segundo, colocar em diálogo as características da polêmica aberta e velada, estudadas por Bakhtin ao examinar o diálogo no romance de Dostoiévski[3] com os estudos retóricos atuais, observando como cada enunciação recria “à sua maneira a enunciação [de outrem], dando-lhe uma orientação particular, específica”, nas palavras bakhtinianas em MFL (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, V. N., 1981, p.158), especialmente pela entonação valorativa nelas inseridas. [1] BAKHTIN, M. M. O discurso no romance. Questões de literatura e de estética. A teoria do romance. 3 ed. São Paulo: Unesp/Hucitec, 1993, p.71-164. [3] BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. 4
ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008. |
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