Adail Ubirajara Sobral
 

Das significações na língua ao sentido na linguagem: uma proposta

 

Adail Sobral (UCPel – PPGL/LEAL-CNPq)

 

 

 

A proposta aqui apresentada, que constitui um trabalho em andamento e não algo acabado, parte da teoria dialógica do discurso. Esta proposta se acha até o momento situada no nível discursivo-genérico, padecendo da falta de tratamento do plano linguístico-textual mais estrito, igualmente necessário. Pretende-se precisamente desenvolver formas de integração desses dois planos. Nesse sentido, o interesse específico da proposta é desenvolver uma análise em termos de gêneros que parta da palavra no sistema da língua e, considerando enunciados efetivamente produzidos, verifique de que maneiras as significações na língua são apropriadas pelos discursos e servem à instauração de sentidos. Ao falar de neutralidade da palavra, Bakhtin não diz que existam palavras não valoradas nos discursos, mas indica em vez disso que as palavras estão disponíveis no inventário da língua para assumir sentidos, para ser valoradas, para além de sua significação no dicionário, em vez de já ter sentidos fixados. A palavra é apropriada ideologicamente ao ser usada; na língua, não tem sentidos fixados, mas significações, que, ao ser mobilizadas, criam sentido.

 Essa concepção diz, portanto, que as palavras não têm um sentido dado, apesar das significações dicionarizadas, mas adquirem sentido nos contextos de uso, contextos que envolvem a interação entre interlocutores específicos, em esferas de atividade e mediante seus gêneros. Os contextos de uso podem fazer que uma palavra de significação negativa no dicionário adquira sentidos positivos. Tudo depende de quem diz o que a quem, em que circunstância, quando e de que maneira, o que envolve a negociação de sentidos na situação de produção de discursos. É portanto a relação enunciativa que determina os sentidos possíveis e realizados nas interações. Considera-se assim, na proposta, que o sentido advém do discurso, não de forma independente da língua, mas também não restrito às significações. Claro que as significações podem ser mais ou menos cristalizadas, e claro que os locutores não desprezam sua experiência da língua. Mas as significações não são de modo geral o fator determinante, ainda que, como se disse, indispensável para a instauração de sentidos. Logo, ainda se considerem diferentes acepções de uma dada palavra, a produção de sentidos mobiliza essas acepções para seus fins específicos. 

 Os princípios decorrentes dessa concepção dialógica com vistas a investigar a transformação de significações na língua em sentidos na linguagem estão apresentados a seguir.

 

       PRINCÍPIOS 

 

  1. Todo estudo discursivo considera seu objeto uma unidade que articula os aspectos linguístico-textuais, que envolvem os enunciados, e os aspectos sócio-históricoideológicos de seu objeto, que envolvem a enunciação e, portanto, a situação de enunciação, em seus aspectos de produção, circulação e recepção.

  2. Por meio do texto, tem-se acesso imediato, embora não transparente, ao discurso, porém não à “cena enunciativa” de sua produção. Mas como para o texto convergem as formas da língua e de textualização e as marcas do cenário de sua produção, podemos “reconstituir” sua totalidade arquitetônica no contexto do agir humano de que ele é parte.

  3. Convergem para os efeitos de sentido que o discurso produz todos os aspectos do cenário de sua produção, que é sempre irrepetível, sendo por isso que cada discurso específico autoriza um dado conjunto de elementos analíticos a ser mobilizados em seu exame - sem prejuízo do que há de comum à categoria, ou universal concreto (Marx), discurso, que só existe por enfeixar vários exemplares distintos de uma mesma prática social.

  4. Só no discurso, que remete no contexto cambiante de sua produção, se pode verificar a gênese e o vir-a-ser do sentido, sendo o discurso, por esse motivo, um objeto semiótico em fazer-se tanto para o olhar do interlocutor como para o do analista. A estabilidade de sua materialidade, de seu existir concreto, garante sua inteligibilidade em geral no plano da significação, mas só seu caráter situado, o fato de ser produzido numa dada situação de produção, cria sentido.

  5. O discurso se funda enquanto espaço de produção de sentidos na relação entre as instâncias de que ele vem e aquelas a que ele se dirige. Assim, o sentido não vem só do linguístico/textual nem só do contextual, nem pode ser tido como apenas subjetivo ou apenas objetivo. 

  6. O sentido é uma função da intencionalidade conferida aos sujeitos, e de que eles se apropriam, no âmbito das práticas da cultura, da história, etc.; a intencionalidade não advém de algum sujeito individual autônomo que unisse, de várias maneiras (parte essencial do objeto de estudo), as instâncias constitutivas. Com isso não se retira ao sujeito o caráter “autoral” de seu agir discursivo, mas põe-se em destaque o fato de que seu agir é constitutivamente relacional: só há eu porque há tu.

  7. O objeto a ser estudado é a forma do conteúdo do discurso. Ou seja, se se estudar num poema o nível fônico, deve-se fazê-lo do ponto de vista da contribuição que isso pode dar e dá ao sentido do discurso. Logo, não se descrevem os sentidos do discurso em termos de seu conteúdo puro e simples, mas considerando igualmente a forma como nele se dá a instauração do sentido e o material de que ele se serve: o dizer envolve por sua própria natureza o modo de dizer.

  8. Nesse sentido, a “referencialidade” situa-se no discurso, sendo instaurada a partir da categorização do mundo dado nos termos das especificidades da interação locutor/interlocutor. Portanto, as expressões linguísticas não são idênticas a coisas do mundo real, mas dispositivos de remissão a entidades de que falam os interlocutores do ponto de vista de sua interação. A referencialidade é uma função advinda da intencionalidade fundadora do discurso, que constitui, em última análise, o próprio elemento desencadeador de sua existência.

  9. Teríamos nessa relação instauradora o “grande destinador”, o “grande sobredestinatário” ou o “grande fiador” do discurso, sua condição primeira de possibilidade; porque essa relação precede, ainda que leve necessariamente em conta, a “escolha” de um sobredestinatário. Logo, o discurso vem essencialmente a ser mediante o dispositivo de instauração dessa intencionalidade, que depende da instauração da relação locutor-interlocutor.

    A partir desses princípios, se propõem os postulados de análise a seguir.

     

    POSTULADOS DE ANÁLISE

  1. Respeitar a unidade do discurso: tudo se entende nele com base na conjugação específica que ele faz dos planos de sua estrutura linguístico-textual com sua articulação ao contexto. Isso implica examinar a relação de cada componente do discurso com todos os outros em termos de sua dominante enunciativa, naturalmente na medida do humanamente possível. Porque, por sua própria natureza, a produção de sentidos é inesgotável.

  2. Não perder de vista que a relação entre o locutor e o interlocutor se acha instaurada no discurso e por meio dele é constitutiva de seu sentido; fora dessa relação, não há sentido discursivo.

  3. Distinguir claramente, e de maneira exaustiva, entre a linguagem da descrição e a do objeto, porque, se é o objeto que deve determinar a descrição, esta não deve buscar enquadrá-lo, mas explicá-lo, e toda descrição implica um dado recorte do fenômeno na criação do objeto.

  4. Examinar o discurso, partindo da superfície material em que ele se configura como discurso, para chegar às condições, profundas, tanto da possibilidade do vir-aser do sentido como do vir-a-ser específico do discurso dado. Isso envolve verificar as relações essenciais (“internas” e “externas”) a partir das quais ocorre a instauração da relação locutor-interlocutor, que é a base da constituição do sentido. 

  5. Examinar as “imagens” do locutor e do interlocutor tal como se mostram no discurso a fim de determinar de que maneira o discurso objeto de análise instaura sua intencionalidade e que intencionalidade é essa. Para fazê-lo, examinam-se (i) os mecanismos e estratégias discursivos dominantes no discurso dado; (ii) a sequência na qual se distribuem esses mecanismos discursivos no discurso; (iii) as inter-relações entre esses mecanismos.

  6. Reconstituir com base nesses elementos o percurso contrário, o que vai das condições de possibilidade do sentido aos mecanismos de discursivização. Em outras palavras, tendo descrito a estrutura manifesta da superfície do discurso, do ponto de vista das relações de interlocução, descreve-se o percurso que levou a essa cobertura discursiva a partir da intencionalidade desencadeadora do vir-a-ser da unidade de produção de sentidos estudada, “voltando” assim à superfície. Isso completa o círculo, revelando que a análise considera o tempo inteiro a superfície e a base, o particular e o geral, as especificidades de funcionamento de discursos dados e a similitude das formas de conteúdo dos discursos em geral, com ênfase na inscrição destes nos gêneros e de sua constituição “genérica”.