Beth Brait

 A corporificação estético-discursiva da memória política

 

Beth Brait

 

(PUC-SP, USP, CNPq)

 

 

 

Tudo se precipita e ei-nos enrolados em espirais a nos enrolarem espiraladamente, ei-nos confundidos em sendas várias, caminhos obscuros em que nos desencaminhamos, eis-nos fundidos, confiscados, confundidos. Nu, pendurado, os choques. Como retratar a cena que retorna?

 

L. R. Salinas Fortes

 

 

 

Quando um acontecimento político mexe com a cabeça de um determinado grupo social, a memória de cada um de seus membros é afetada pela interpretação que a ideologia dominante dá a este acontecimento. Portanto, uma das faces da memória pública tende a permear as consciências individuais.

Ecléa Bosi   

 

 

 

 

     Este trabalho [resumo expandido] apresenta parte dos primeiros resultados de meu projeto atual de pesquisa[1], referente ao recorte dedicado a análise dos discursos literários que tematizam a ditadura militar dos anos 1960/1970. Diferentemente do prometido no resumo inicial, apenas uma obra será aqui tratada, incluindo a fundamentação teórica por ela motivada. 

      Parto do princípio que a prosa literária pode ser considerada um tipo de manifestação estético-cultural que cumpre, dentre vários outros papeis, o de possibilitar a corporificação da memória de um sujeito que, para se constituir como tal, se faz autor e/ou herói, mergulhado em tempos e espaços que desenham uma época, uma cultura, uma sociedade, ou, especialmente, um conjunto de acontecimentos difíceis de serem (re)tratados. Para urdir esses elementos nas malhas do discurso, um inevitável diálogo, polêmico e doloroso, vai se tecendo entre passado/presente, social/individual, memória/escritura. Nessa perspectiva, há um momento da história brasileira recente, a ditadura militar abrigada pelos anos 60 e 70 do século passado, que motivou uma grande quantidade de obras, testemunhas desse momento que, ao se re-apresentar, instaura dor física, moral, existencial. Nesse sentido, as obras que compõem esse universo abrangem gêneros que vão do testemunho documental, muito próximo à reportagem, à ficção que se reinventa para abrigar a quase impossibilidade do dizer. Do significativo universo representado por essas obras, Retrato calado[2], de Luiz Roberto Salinas Fortes[3] aparece como sofisticada metonímia de uma das formas de corporificação da memória trágica, por meio do eixo fundamental calar/falar/nomear. 

     Nesse sentido, Retrato calado coloca em circulação discursos que conferem à narrativa o poder se ser, ao mesmo tempo, sobre um sujeito, seu enunciador, seu autorcriador, que é também o objeto do narrado e, sobre um tempo que se deixa ver, entrever, por meio de um tecido discursivo tramado por diferentes fios tensos, de matizes variadas, por vezes contraditórios, nos quais a memória corporificada se vê dolorosa e lucidamente enredada. Dentre os aspectos discursivos que caracterizam a obra, alguns estão elencados a seguir. 

 

  1. O embate calar/falar, sustentáculo da dimensão arquitetônica do todo do enunciado, que move a voz narrativa e que convoca, para constituir a enunciação e as causas de seus intervalos, silêncios, ausências, vozes e discursos de natureza, tempos e espaços variados. 

  2. A importância conferida à escrita, por seu papel vital na tentativa de compreender o eu, o outro, a vida e, também, aos gêneros capazes de realizar esse conteúdo temático, sinalizados como relato histórico, memórias, autobiografia, aventuras autobiográficas.

  3. A reflexão sobre a linguagem, sobre a palavra, associada a interlocutores, especialmente leitores em diferentes camadas, aí incluídos o dessa obra em processo, evocados ao longo da enunciação, conferem, de maneira explícita, dimensão dialógica ao enunciado. 

  4. O espaço reservado ao discurso filosófico que, ao se fazer voz, ao se enunciar, permite aflorar o que cala, confrontando a reflexão filosófica, profissional, acadêmica e metafisicamente conhecida e discutida, e a vivência dessa dimensão, assim comentada pelo enunciador: “Como se, de repente, a própria realidade, pegando-me pela palavra, se pusesse a ilustrar e comentar as peripécias abstratas do discurso filosófico [...] (p.27)”. Em A república de Platão [Livro I], o destaque para o diálogo entre Trasímaco e Sócrates; em Assim falou Zaratrusta, de Nietzche, a epígrafe extraída de “A picada da víbora” (item XIX da Primeira Parte) e a questão do “eterno retorno”; em O Príncipe, de Maquiavel, obra evocada três vezes, questão do poder, a constituição e as formas de ser e se perceber do poderoso outro, a tomada de consciência em relação ao regime; 

  5. O gênero memórias desestabilizado enquanto simples testemunho individual, assumindo a condição de diálogo social de linguagens. 

     A perspectiva teórica que orienta a discussão é o que Mikhail Bakhtin denomina estilística do gênero romance, estilística dos gêneros da prosa literária, cuja especificidade reside justamente no diálogo social das linguagens que acontece na totalidade de uma obra. Essa discussão aparece, de forma detalhada, no trabalho O discurso no romance, gestada no final dos anos 1920 e publicada nos anos 1930[4], e cuja primeira parte se intitula “As questões de estilística no romance”[5]. Nessa primeira parte, o autor faz uma reflexão sobre a natureza especial da linguagem no romance (2015, p.19), afirmando a necessidade de uma estilística sociológica, de uma “estilística do gênero” para constituir uma poética da prosa. Em trabalhos anteriores[6], procurei analisar a questão do gênero e especialmente do estilo, considerando essa dimensão da linguagem como motivo de grande interesse tanto para M. Bakhtin como para os demais pensadores do Círculo. A meu ver, o estilo desempenha um papel epistemológico fundamental no que diz respeito à reflexão sobre o eu/outro, à constituição de identidades/alteridades. Na presente reflexão sobre Retrato falado, “O discurso no romance”, de M. Bakhtin, contribui para a compreensão de uma estilística do discurso, a qual envolve especialmente estilo de gêneros, sem excluir o estilo de enunciadores, dos que falam na prosa. 

     Na obra, a partir de fundo inicial, crítico argumentativo, Bakhtin apresenta a definição de romance, de prosa literária e, também, as características de uma estilística compatível com as especificidades desse gênero, circunscrito como “um fenômeno pluriestilístico, heterodiscursivo (plurilinguístico), heterovocal”. Chega à compreensão de que “o estilo romanesco reside na combinação de estilos; que a linguagem do romance é um sistema de ‘linguagens’”, apresentando-se, portanto, como “heterodiscurso[7] social artisticamente organizado [...] (2015, p.29, destaques no original). Além disso, da perspectiva de sua gênese, “o romance e os gêneros da prosa literária que gravitam em torno dele formaram-se historicamente no curso das forças centrífugas descentralizadoras” (2015, p.42, destaques no original). 

     A proposta de M. Bakhtin relacionada a uma estilística do discurso ou uma poética da prosa, foi retomada neste trabalho com o objetivo de realizar uma leitura da obra Retrato falado, de Luiz Roberto Salinas Fortes, e trazer para as discussões teóricas e metodológicas atuais, uma forma de tratar a prosa que, dentre muitas outras, tem como peculiaridade a capacidade de focalizar um gênero em sua vocação de fazer circular linguagens sociais, discursos enquanto pontos de vista, confrontos, valores em tensão. Mesmo quando o gênero se autoclassifica ou é classificado como autobiográfico.

     O texto escolhido poderia ser definido unicamente como testemunho do trágico momento vivido por seu autor e pelos brasileiros de uma forma geral. Entretanto, mesmo se oferecendo textualmente como memórias, como autobiografia, ou talvez exatamente por isso, ele desestabiliza a condição de simples testemunho, ou de relato subjetivo e personalista, para problematizar a escrita, a possibilidade de presentificar memórias, a dificuldade de ser, ao mesmo tempo, sujeito e objeto da enunciação, a necessidade de interação com interlocutores que vivenciaram, de alguma maneira, os momentos retratados.

 

 


 

[1] Projeto/CNPq (2015-2019) “Fundamentos e desdobramentos da perspectiva dialógica para a análise de discursos verbais e verbo visuais, que tem como um dos corpora obras de ficção voltadas para o período da ditadura militar brasileira, situada nas décadas de 1960 e 1970. A finalidade é mobilizar diferentes aspectos teóricos da análise dialógica do discurso (ADD) para a compreensão dos discursos plurilíngues de resistência que se articulam nessas obras, em oposição ao discurso monológico da ditadura militar.

 
 
 

[2] Primeira edição 1988; segunda 2012. 

 
 
 

[3] Luiz Roberto Salinas Fortes (Araraquara, 01/07/1937; São Paulo, 04/08/1987) foi professor de filosofia da Universidade de São Paulo/USP, escritor, tradutor, jornalista, filósofo e especialista em J. J. Rousseau.

 
 
 

[4] Ver detalhes em Bakhtin, 2015, p. 7-14.

 
 
 

[5] Esse título aparece na nova edição brasileira (BAKHTIN, 2015), sendo diferente da tradução anterior em que essa parte se intitulava “A estilística contemporânea e o romance” (BAKHTIN, 1988). As referências, neste trabalho, serão feitas a partir da nova tradução. Em espanhol: “La palavra en la novela” (1989, p.77-236). 

 
 
 

[6] Cf. BRAIT, 2002, 2005, 2016, 2010, 2013, 2014, dentre outros.

 
 
 

[7] Em nota, o tradutor Paulo Bezerra explica o sentido do termo: Heterodiscurso ou diversidade de discursos. Heterodiscurso éminha tradução para a antiga palavra russa raznorétchie, que no Brasil foi traduzida como “plurilinguismo” e “heteroglossia” [...] (BAKHTIN, 2015, P.29).